Carmela
Dezoito
horas e meia. Nem mais um minuto porque a madama respeita as horas de trabalho.
Carmela sai da oficina. Bianca vem ao seu lado.
A Rua
Barão de Itapetininga é um depósito sarapintado de automóveis gritadores. As
casas de modas (AO CHIC PARISIENSE, SÃO PAULO-PARIS, PARIS ELEGANTE) despejam
nas calçadas as costureirinhas que riem, falam alto, balançam os quadris como
gangorras.
- Espia se
ele está na esquina.
- Não
está.
- Então
está na Praça da República. Aqui tem muita gente mesmo.
- Que
fiteiro!
O vestido
de Carmela coladinho no corpo é de organdi verde. Braços nus, colo nu, joelhos
de fora. Sapatinhos verdes. Bago de uva Marengo maduro para os lábios dos
amadores.
- Ai que
rico corpinho!
- Não se
enxerga, seu cafajeste? Português sem educação!
Abre a
bolsa e espreita o espelhinho quebrado, que reflete a boca reluzente de carmim
primeiro, depois o nariz chumbeva, depois os fiapos de sobrancelha, por último
as bolas de metal branco na ponta das orelhas descobertas.
Bianca por
ser estrábica e feia é a sentinela da companheira.
- Olha o
automóvel do outro dia.
- O
caixa-d’óculos?
- Com uma
bruta luva vermelha.
O
caixa-d’óculos pára o Buick de propósito na esquina da praça.
- Pode
passar.
- Muito
obrigada.
Passa na
pontinha dos pés. Cabeça baixa. Toda nervosa.
- Não vira
para trás, Bianca. Escandalosa!
Diante de
Álvares de Azevedo (ou Fagundes Varela) o Ângelo Cuoco de sapatos vermelhos de
ponta afilada, meias brancas, gravatinha deste tamanhinho, chapéu à Rodolfo
Valentino, paletó de um botão só, espera há muito com os olhos escangalhados de
inspecionar a Rua Barão de Itapetininga.
- O
Ângelo!
- Dê o
fora.
Bianca
retarda o passo.
Carmela
continua no mesmo. Como se não houvesse nada. E o Ângelo junta-se a ela. Também
como se não houvesse nada. Só que sorri.
- Já
acabou o romance?
- A madama
não deixa a gente ler na oficina.
- É? Sei.
Amanhã tem baile na Sociedade.
- Que
bruta novidade, Ângelo! Tem todo domingo. Não segura no braço!
- Enjoada!
Na Rua do
Arouche o Buick de novo. Passa. Repassa. Torna a passar.
- Quem é
aquele cara?
- Como é
que eu hei de saber?
- Você dá
confiança para qualquer um. Nunca vi, puxa! Não olha pra ele que eu armo já uma
encrenca!
Bianca rói
as unhas. Vinte metros atrás. Os freios do Buick guincham nas rodas e os
pneumáticos deslizam rente à calçada. E estacam.
- Boa
tarde, belezinha…
- Quem?
Eu?
- Por que
não? Você mesma…
Bianca rói
as unhas com apetite.
- Diga uma
cousa. Onde mora a sua companheira?
- Ao lado
de minha casa.
- Onde é
sua casa?
- Não é de
sua conta.
O
caixa-d’óculos não se zanga. Nem se atrapalha. É um traquejado.
- Responda
direitinho. Não faça assim. Diga onde mora.
- Na Rua
Lopes de Oliveira. Numa vila. Vila Margarida n.0 4. Carmela mora com a família
dela no 5.
- Ah!
Chama-se Carmela… Lindo nome. Você é capaz de lhe dar um recado?
Bianca rói
as unhas.
- Diga a
ela que eu a espero amanhã de noite, às oito horas, na rua… na…. atrás da
Igreja de Santa Cecília. Mas que ela vá sozinha, hein? Sem você. O barbeirinho
também pode ficar em casa.
-
Barbeirinho nada! Entregador da Casa Clark!
- É a
mesma cousa. Não se esqueça do recado. Amanhã, as oito horas, atrás da igreja.
- Vá
saindo que pode vir gente conhecida.
Também o
grilo já havia apitado.
- Ele
falou com você. Pensa que eu não vi?
O Ângelo
também viu. Ficou danado.
- Que me
importa? O caixa-d’óculos disse que espera você amanhã de noite, às oito horas,
no Largo Santa Cecília. Atrás da igreja.
- Que é
que ele pensa? Eu não sou dessas. Eu não!
- Que
fita, Nossa Senhora! Ele gosta de você, sua boba.
- Ele
disse?
- Gosta
pra burro.
- Não vou
na onda.
- Que
fingida que você é!
- Ciao.
- Ciao.
Antes de
se estender ao lado da irmãzinha na cama de ferro Carmela abre o romance à luz
da lâmpada de 16 velas: Joana a Desgraçada ou A Odisséia de uma Virgem,
fascículo 2.0
Percorre
logo as gravuras. Umas tetéias. A da capa então é linda mesmo. No fundo o
imponente castelo. No primeiro plano a íngreme ladeira que conduz ao castelo. Descendo
a ladeira numa disparada louca o fogoso ginete. Montado no ginete o apaixonado
caçula do castelão inimigo de capacete prateado com plumas brancas. E
atravessada no cachaço do ginete a formosa donzela desmaiada entregando ao
vento os cabelos cor de carambola.
Quando
Carmela reparando bem começa a verificar que o castelo não é mais um castelo
mas uma igreja o tripeiro Giuseppe Santini berra no corredor:
- Spegni
la luce! Subito! Mi vuole proprio rovinare questa principessa!
E – raatá!
– uma cusparada daquelas.
- Eu só
vou até a esquina da Alameda Glette. Já vou avisando.
- Trouxa.
Que tem?
No Largo
Santa Cecília atrás da igreja o caixa-d’óculos sem tirar as mãos do volante
insiste pela segunda vez:
- Uma
voltinha de cinco minutos só… Ninguém nos verá. Você verá. Não seja má. Suba
aqui.
Carmela
olha primeiro a ponta do sapato esquerdo, depois a do direito, depois a do
esquerdo de novo, depois a do direito outra vez, levantando e descendo a cinta.
Bianca rói as unhas.
- Só com a
Bianca…
- Não.
Para quê? Venha você sozinha.
- Sem a
Bianca não vou.
- Está
bem. Não vale a pena brigar por isso.
- Você vem
aqui na frente comigo. A Bianca senta atrás.
- Mas
cinco minutos só. O senhor falou…
- Não
precisa me chamar de senhor. Entrem depressa.
Depressa o
Buick sobe a Rua Viridiana.
Só pára no
Jardim América.
Bianca no
domingo seguinte encontra Carmela raspando a penugenzinha que lhe une as
sobrancelhas com a navalha denticulada do tripeiro Giuseppe Santini.
- Xi,
quanta cousa pra ficar bonita!
- Ah!
Bianca, eu quero dizer uma cousa pra você.
- Que é?
- Você
hoje não vai com a gente no automóvel. Foi ele que disse.
- Pirata!
- Pirata
por quê? Você está ficando boba, Bianca.
- É. Eu
sei porquê. Piratão. E você, Carmela, sim senhora! Por isso é que o Ângelo me
disse que você está ficando mesmo uma vaca.
- Ele
disse assim? Eu quebro a cara dele, hein? Não me conhece.
- Pode
ser, não é? Mas namorado de máquina não dá certo mesmo.
Saem à rua
suja de negras e cascas de amendoim. No degrau de cimento ao lado da mulher
Giuseppe Santini torcendo a belezinha do queixo cospe e cachimba, cachimba e
cospe.
- Vamos
dar uma volta até a Rua das Palmeiras, Bianca?
- Andiamo.
Depois que
os seus olhos cheios de estrabismo e despeito vêem a lanterninha traseira do
Buick desaparecer, Bianca resolve dar um giro pelo bairro. Imaginando cousas.
Roendo as unhas. Nervosissima.
Logo
encontra a Ernestina. Conta tudo ã Ernestina.
- E o
Ângelo, Bianca?
- O
Ângelo? O Ângelo é outra cousa. E pra casar.
- Há!…
Gaetaninho
“- Xi,
Gaetaninho, como é bom!
Gaetaninho
ficou banzando bem no meio da rua. O Ford quase o derrubou e ele não viu o
Ford. O carroceiro disse um palavrão e ele não ouviu o palavrão.
- Eh! Gaetaninho Vem pra dentro.
Grito materno sim : até filho surdo escuta. Virou o rosto tão feio de sardento,
viu a mãe e viu o chinelo.
- Subito!
Foi-se
chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho. Estudando o terreno.
Diante da mãe e do chinelo parou. Balançou o corpo. Recurso de campeão de futebol.
Fingiu tomar a direita. Mas deu meia volta instantânea e varou pela esquerda
porta adentro.
Eta salame
de mestre!
Ali na Rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel ou carro
só mesmo em dia de enterro. De enterro ou de casamento. Por isso mesmo o sonho
de Gaetaninho era de realização muito difícil. Um sonho.
O Beppino
por exemplo. O Beppino naquela tarde atravessara de carro a cidade. Mas como?
Atrás da Tia Peronetta que se mudava para o Araçá. Assim também não era
vantagem.
Mas se era
o único meio? Paciência.
Gaetaninho enfiou a cabeça embaixo do travesseiro.
Que beleza
, rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados levavam a Tia Filomena
para o cemitério. Depois o padre. Depois o Savério noivo dela de lenço nos
olhos. Depois ele. Na boléia do carro. Ao lado do cocheiro. Com a roupa
marinheira e o gorro branco onde se lia: ENCOURAÇADO SÃO PAULO.
Não.
Ficava mais bonito de roupa marinheira mas com a palhetinha nova que o irmão
lhe trouxera da fábrica. E ligas pretas segurando as meias. Que beleza, rapaz!
Dentro do carro o pai, os dois irmãos mais velhos (um de gravata vermelha,
outro de gravata verde) e o padrinho Seu Salomone. Muita gente nas calçadas,
nas portas e nas janelas dos palacetes, vendo o enterro. Sobretudo admirando o
Gaetaninho.
Mas
Gaetaninho ainda não estava satisfeito. Queira ir carregando o chicote. O
desgraçado do cocheiro não queria deixar. Nem por um instantinho só.
Gaetaninho
ia berrar mas a Tia Filomena com mania de cantar o “Ahi, Mari!” todas as manhãs
o acordou.
Primeiro
ficou desapontado. Depois quase chorou de ódio. Tia Filomena teve um ataque de
nervos quando soube do sonho de Gaetaninho. Tão forte que ele sentiu remorsos.
E para sossego da família alarmada com o agouro tratou logo de substituir a tia
por outra pessoa numa nova versão de seu sonho. Matutou, matutou, e escolheu o
acendedor da Companhia de Gás, seu Rubino, que uma vez lhe deu um cocre danado
de doído.
Os irmãos
(esses) quando souberam da história resolveram arriscar de sociedade quinhentão
no elefante. Deu a vaca. E eles ficaram loucos de raiva por não haverem logo
adivinhado que não podia deixar de dar a vaca mesmo.
O jogo na
calçada parecia de vida ou morte. Muito embora Gaetaninho não estava ligando.
- Você
conhecia o pai do Afonso, Beppino?
- Meu pai deu uma vez na cara dele.
- Então você não vai amanhã no enterro. Eu vou!
O Vicente protestou indignado:
- Assim não jogo mais ! O Gaetaninho está atraplhando!
Gaetaninho voltou para o seu posto de guardião. Tão cheio de responsabilidades.
O Nino
veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem perto. Com o tronco arqueado,
as pernas dobradas, os braços estendidos, as mãos abertas, Gaetaninho ficou
pronto para a defesa.
- Passa
pro Beppino!
Beppino
deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o muque. Ela cobriu o guardião
sardento e foi parar no meio da rua.
- Vá dar
tiro no inferno!
- Cala a boca, palestrino!
- Traga a bola!
Gaetaninho
saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou. Pegou e matou.
No bonde
vinha o pai de Gaetaninho.
Agurizada
assustada espalhou a notícia na noite.
- Sabe o
Gaetaninho?
- Que é que tem?
- Amassou o bonde!
A
vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras.
Às
dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da Rua do Oriente e Gaetaninho
não ia na boléia de nenhum dos carros do acompanhamento. Lá no da frente dentro
de um caixão fechado com flores pobres por cima. Vestia a roupa marinheira,
tinha as ligas, mas não levava a palhetinha.
Quem na
boléia de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo terno vermelho que
feria a vista da gente era o Beppino.”